A depreciação dos honorários médicos parece ser um caminho de difícil retorno. Em tempos de pandemia e telemedicina autorizada de maneira excepcional, a situação se torna ainda mais complexa, com alguns profissionais e operadoras ofertando consultas médicas a R$20,00 (vinte reais). Será possível recuperar o valor dos honorários médicos?
Prima facie, é preciso entender as razões pelas quais, ano após ano, os médicos foram perdendo o valor de sua atuação profissional. Listemos algumas causas:
“O médico é o lobo do médico”. A concepção Hobbesiana aqui apontada sinaliza que os médicos, em grande parte, não se preocupam se os valores irão se reduzir pouco a pouco, desde que consigam manter o fluxo de seu consultório ativo. Certamente o atravessador de sua mão de obra agradece, já que irá conseguir reduzir os custos assistenciais com os usuários de seu plano.
O sistema fee for service em extinção. A remuneração sempre foi baseada nos procedimentos executados, e não nas horas despendidas pelo médico assistente. Alguns argumentam que o foco dessa forma de prestação de serviços está no número de procedimentos, quando deveria focar na prevenção. Certamente os adeptos dessa ideia são gestores financeiros, e não médicos.
Verticalização. Os atravessadores, além de reduzir de forma sistemática o valor dos procedimentos, agora implantam estruturas hospitalares próprias e contratam profissionais por hora de trabalho. Para cada médico que executava procedimentos diários em seu consultório, há uma dúzia de médicos executando o mesmo procedimento, 24 horas por dia, em serviço próprio, a um custo infinitamente menor, em verdadeira linha de produção.
Vala comum. A ideia de que um profissional desonesto deva ser punido não é uma unanimidade nas operadoras. O mau profissional serve de justificativa do atravessador para tomar medidas que atingem a todos. Um exemplo disso é a parametrização de exames. Para citar outro exemplo, em 2017, somente no Distrito Federal, foco da operação Mister Hyde, o número de solicitações de cirurgias com materiais implantáveis na área médica e odontológica caiu cerca de 30% após a deflagração das investigações.
“Se você aceitar, lhe mandaremos todos os pacientes”. É comum os serviços e profissionais autônomos, seduzidos pela possibilidade de serem exclusivos de algumas operadoras, reduzirem drasticamente o valor dos procedimentos, na promessa de uma sala de espera cheia. Se esquecem que mais adiante um outro serviço ou profissional, também seduzido, adotará a mesma prática, numa sequência sem fim na redução dos custos dos tomadores de serviço e, consequentemente, em prejuízo para os prestadores.
“Estamos ofertando um reajuste de 50% do IPCA. É pegar ou largar”. As operadoras jamais repassaram aos prestadores sequer os índices da ANS para os planos individuais. Porém, os contratos individuais, aqueles regulamentados pela agência reguladora, correspondem a menos de 10% dos planos de saúde disponibilizados no mercado. Mais de 90% da carteira são de planos coletivos, cujos índices de aumento são ditados unilateralmente pelas operadoras sem qualquer ingerência da ANS. Porque nunca repassaram os índices para os prestadores de serviços?
Feitas essas considerações, apontamos para o valor de uma consulta médica. Se considerarmos o coeficiente de honorários de uma consulta (100 ch), ela deveria estar valendo, em abril de 2020, R$307,00 (trezentos e sete reais), se corrigido ano a ano pelo IGPM. O cálculo é feito a partir do estudo do Professor Dr. Antônio Celso Nunes Nassif, que concluiu que em maio de 1996 o valor de 1ch (coeficiente de honorário) deveria ser de R$0,51 (cinquenta e um centavos). O médico que aceita realizar uma consulta a distância ou mesmo presencial a R$20,00 (vinte reais) está depreciando sua atividade em 93,5%. Ele irá receber 6,5% daquilo que efetivamente deveria receber, sem contar ainda os custos fiscais e descontos obrigatórios.
Nada justifica um atendimento médico remoto ter um valor ainda menor que o atendimento presencial. O que se remunera é o conhecimento e o tempo do médico assistente dedicado ao seu paciente. Uma boa consulta demanda uma boa audição, um bom conhecimento do quadro clínico do examinado e um bom exame físico. Soma-se a isso o fato de que a celeridade no atendimento aumenta substancialmente o risco de erros diagnósticos e procedimentos equivocados. Desumanizar a medicina e rentabilizá-la dessa forma equivale a uma prática médica de baixa qualidade, cujo risco é carreado para o médico assistente e, principalmente, para o usuário do plano de saúde.
Na oftalmologia, também para exemplificar, cuja dependência de aparelhos sofisticados é notória, falar em “teleconsulta” é algo que foge à realidade. Segundo alguns especialistas, o atendimento remoto em oftalmologia não tem efetividade. Imaginar o exame ocular do paciente com uma imagem de celular para, em seguida, diagnosticar, é algo sem amparo técnico suficiente. Tudo isso por um valor bem menor do que efetivamente deveria custar. É preciso critério e prudência sob pena de aumentar ainda mais o risco da atividade e carrear ao médico assistente mais uma carga de responsabilidade civil pelo fato do serviço.
Medidas como união e organização de grupos de especialidade são de extrema importância e indicam para o necessário fortalecimento coletivo. É preciso um trabalho pedagógico e uma conscientização de como atuam os tomadores de serviços e a forma predatória com que negociam. O fortalecimento da classe médica passa ainda pelo plano político, com espécies normativas sendo editadas a favor dos profissionais da área da saúde, fortalecendo o tecido normativo em benefício desses profissionais. É sempre bom lembrar: sem médico não há assistência à saúde.
Dedico esse texto ao Drs. Carlos Alfredo Lobo Jasmin, Frederico Pena e Israel Rosemberg.
*Artigo publicado por Valério Ribeiro na edição nº358 da Revista Em Voga.
Valério Ribeiro participa nesta sexta-feira, 7, às 20 horas, do evento SMO TALKS – Especial Dia Do Oftalmologista. O evento é uma realização da Sociedade Mineira de Oftalmologia, com o apoio do Conselho Brasileiro de Oftalmologia (CBO) e Associação Médica de Minas Gerais (AMMG).
A Constituição Federal de 1988 está à volta de completar, no próximo dia cinco de outubro, um quarto de século de sua promulgação e com ela a criação do SUS – Sistema Único de Saúde.
O caos da saúde pública e a busca desenfreada por lucros por parte das operadoras na saúde faz com que os médicos prefiram o atendimento em seu consultório particular.