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14 de março de 2022

MEDICINA BASEADA EM “VALOR”

Segundo dados de pesquisa recente do Núcleo de Estudos e Análises – NEA da Universidade Federal do Triângulo Mineiro, as despesas com saúde em nosso país, no ano de 2020, consumiram cerca de R$692,88 bilhões, ou seja, de 9,3% de todo o PIB anual. Desse percentual, cerca de R$171,50 bilhões, ou 24,75%, são gastos particulares e R$216,97 bilhões, ou 31,31% são gastos com a saúde suplementar (planos privados, seguradoras, autogestão etc). De uma primeira análise é possível perceber que os gastos particulares com saúde alcançam quase todo o montante das despesas consumidas pelos usuários dos planos de saúde.

Nesse sentido, sabemos que de todo o montante despendido na saúde suplementar, apenas cerca de 8% são repassados aos profissionais médicos e cirurgiões dentistas, ao passo que as despesas particulares, ao menos em uma primeira leitura, não contam com a intermediação do atravessador (operadoras) da mão de obra especializada. Isso nos mostra que “há vida fora dos planos de saúde”.

Por outro lado, a remuneração médica vem migrando ano a ano para as mãos daquele que controla sua atividade (atravessador). O valor de 1 CH (coeficiente de honorários) da Tabela AMB 1992 valia R$0,51 (cinquenta e um centavos) em maio de 1996. Quando atualizamos matematicamente esse mesmo valor pelo IGPM atual, constatamos que 1 CH (coeficiente de honorários) vale hoje (março de 2022) R$4,54 (quatro reais e cinquenta e quatro centavos). A consulta médica, se fosse atualizada ao longo dos anos pelo índice acima, custaria hoje o valor de R$454,00 (quatrocentos e cinquenta e quatro reais), ou seja 100 CH’s.

Considerando os valores acima e os valores do CH da Tabela AMB/92 é possível perceber que uma ruptura de manguito deveria custar R$2.270,00 (dois mil e duzentos e setenta reais), uma descompressão medular deveria custar R$6.810,00 (seis mil e oitocentos e dez reais), uma reconstrução de ligamento cruzado deveria custar R$4.540,00 (quatro mil e quinhentos e quarenta reais), uma endoscopia deveria custar R$3.632,00 (três mil e seiscentos e trinta e dois reais), uma vitrectomia via pars plana deveria custar R$6.583,00 (seis mil e quinhentos e oitenta e três reais) e uma cirurgia intracraniana deveria custar R$11.350,00 (onze mil e trezentos e cinquenta reais). Estamos muito longe dessa realidade.

Todos os valores acima apontados consideram apenas os honorários médicos baseados no CH (coeficiente de honorários) da tabela AMB/92. Alguns dirão que a tabela AMB está ultrapassada pela CBHPM ou por outro indexador que queira ser substituído. Porém, o que importa perceber é o quanto foi perdido da remuneração médica ao longo de quase três décadas e desviado para os tomadores dos serviços (atravessador). Uma consulta médica é remunerada por alguns planos de saúde ao valor de R$30,00 (trinta reais). Durante anos os médicos foram deixando que sua remuneração fosse desviada para outros “players”.

Por outro lado, as modalidades de remuneração médica vêm sendo alvo de grande debate. O modelo fee for service, ou pagamento por serviços (conta aberta), vem sofrendo franco ataque ao argumento de gastos exagerados, superfaturamento de preços e abusos na solicitação de exames. Quanto mais se gasta, maior a remuneração do prestador, segundo o debate. Já o modelo de remuneração por capitation, baseado no número de vidas a serem atendidas, remunera o prestador a preço fixo. Nesse último modelo, sem embargo do poder de monopsônio das operadoras, quanto menos o prestador atender, maior será o seu resultado financeiro. O risco e a escolha perversa de quem será atendido é transferido para o serviço, que passa a dificultar os atendimentos e procedimentos complexos com vista à sobra de caixa no final do mês. Em meio aos modelos prospectivos e o retrospectivo fee for service são também apresentados os modelos bundle, que considera um ciclo de cuidado e não apenas procedimentos isolados, como nos tratamentos oncológicos, o modelo de orçamento global, em que um serviço recebe um valor certo para resolver todas as demandas do tomador, ou ainda o pagamento por performance, que nada mais é que o fee for service com um adicional de produtividade.

Feitas essas considerações, ouve-se muito que agora a preocupação do mercado é a melhoria do atendimento da saúde baseada em valor, traduzindo nesse conceito a ideia de que os profissionais deverão melhorar a qualidade de seu atendimento e comprovar a melhoria com capacitação e índices de acreditação e de qualidade.

Pois bem. O mercado retirou grande parte da remuneração dos profissionais. Em alguns procedimentos e exames, os prestadores recebem cerca de 5% daquilo que deveriam receber. Não satisfeitos, os planos agora dizem que os profissionais deverão melhorar a qualidade do serviço que ele, tomador, destruiu ao longo dos últimos 30 anos. A “re-humanização da medicina” proposta pelas operadoras sob os mais variados modelos de remuneração parte da ideia de que os profissionais precisam dar “valor – qualidade” ao trabalho que desempenham, como se eles, prestadores, nunca tivessem tido a preocupação com seus pacientes. É incrível perceber que o mercado que desumanizou a medicina agora pretende “re-humanizá-la” a baixíssimo custo, dizendo que são os profissionais que não entregam a qualidade necessária. É uma absoluta distorção da realidade.

Afora a redução dos honorários, os médicos foram desviados de sua função para preencher uma infinidade de laudos e justificativas de procedimentos, reduzindo os custos de sua atividade para a operadora. Os médicos não percebem que enquanto estão preenchendo documentos estão gerando economia para a operadora, que detém a chave do cofre.

Não satisfeitos, o lobby das operadoras, com franco auxílio da Agência Nacional de Saúde, aprovou a RN 424, que trata das juntas médicas e odontológicas. Sob a afirmação falsa de preocupação com o usuário, começaram a colocar em dúvida o atendimento assistencial do prestador frente ao seu próprio paciente, visando a postergar, restringir ou mesmo negar o atendimento. Todas as vezes que uma operadora instaura uma junta médica ou odontológica, ela coloca em dúvida a qualidade do seu próprio preposto, em autêntica depreciação da qualidade assistencial que ela mesma oferece. Além disso, macula subjetivamente o profissional, já que este passa a sofrer uma série de pedidos de instauração de juntas, servindo os indicadores como franco mecanismo de depreciação qualitativa. O pior é que poucas pessoas conseguem entender o que de fato se passa por trás desses mecanismos de duvidosa ética e eficiência técnica. Como pedir ao médico um atendimento clínico de 1 hora a preço de R$30,00? Isso sem considerar os encargos fiscais. Será mesmo esse o objetivo dos planos de saúde ao dialogar sobre modelos de remuneração?

Segundo o Princípio de Pareto, apenas 20% daquilo que você produz responde por cerca de 80% do resultado obtido. Nessa ordem de ideias, os médicos precisam entender que nenhum profissional sai da faculdade com ganhos estratosféricos. Bons profissionais demandam tempo de dedicação e estudos e uma boa qualidade do atendimento assistencial a que se propõem. Achar que a dedicação profissional exclusiva a uma ou outra operadora é a saída para uma vida profissional segura é franquear ao tomador de serviços a oportunidade da escravização econômica. Os gestores dos planos de saúde sabem muito bem como isso funciona. Os médicos não.

É preciso fazer o processo de “re-humanização da medicina”, porém, de maneira autônoma, sem a dependência predatória dos planos de saúde. A medicina sofre francos ataques por todos os lados. Dizer que a remuneração médica precisa evoluir para um tratamento humanizado é conversa fiada para desviar, uma vez mais, da ideia de remuneração justa para os profissionais. As operadoras, com explícito auxilio da autarquia federal da ANS, vêm fazendo isso há anos. A ANS já disse que não irá interferir no modelo de remuneração escolhido entre as partes, porém já disse que para ela o fee for service deve de fato ser substituído. Quem disse a ela, ANS, que esse modelo não funciona, senão as próprias operadoras, em suas conclusões de encontros e congressos em que se discute de onde tirarão mais dinheiro e aumentarão seus lucros. Não há um único encontro em que as operadoras discutam a melhoria da remuneração médica.

O grito de liberdade e independência precisa ser dado enquanto há tempo e com o necessário auxilio das entidades coletivas profissionais, a estimular, de maneira aberta, que as pessoas busquem alternativas para se cuidar. Sem médico não há saúde. Médicos isolados são presas fáceis nas mãos dos tomadores de serviços e sempre serão explorados pelos grandes conglomerados financeiros que, mais do que nunca, aportam em nosso país grandes somas financeiras. É chegada a hora. Independência ou morte.

*Artigo publicado por Valério Ribeiro na edição nº371 da Revista Em Voga.

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