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10 de setembro de 2019

A OPTOMETRIA DEU UM TIRO NO PÉ

Como é de conhecimento, no último dia 14/08/2019 foi apresentado Projeto de Lei nº 4.481/2019 na Câmara dos Deputados, cuja ementa aponta para objetivo de “alterar o Decreto nº 20.931, de 11 de janeiro de 1932, e o Decreto nº 24.492, de 28 de junho de 1934, para permitir que optometristas efetuem exames básicos de acuidade visual, encaminhando para médicos oftalmologistas os pacientes com alterações”.

A pretensão legislativa, da lavra do Deputado Enéias Reis, visa a revogar o artigo 38 do Decreto 20.931/32 e o artigo 17 do Decreto 24.492/34 e acrescentar o artigo 39-A, no primeiro decreto, estabelecendo que “os optometristas poderão fazer avaliações básicas da acuidade visual, ficando obrigados a encaminhar para avaliação oftalmológica os pacientes com alterações”.

Em sua justificação, o autor do projeto aponta que o “optometrista é um profissional autônomo e independente” e que os decretos de 1932 e 1934 “foram recepcionados pela Carta Magna como lei ordinária” e que “a Classificação Brasileira de Ocupações, lista oficial de profissões do Brasil emitida pelo Ministério do Trabalho, reconhece a profissão de “técnicos em óptica e optometria”.

E continua o autor do projeto informando que “este projeto de lei pretende permitir que optometristas possam fazer o exame básico das funções visuais, com obrigação de encaminhamento para oftalmologistas em caso de alterações”. É um breve resumo do projeto de lei apresentado pelo deputado Enéias Reis.

A optometria deu um tiro no pé.

Ao apontar que os decretos 20.931/32 e 24.492/34 estão em vigor e foram recepcionados pela Constituição Federal, sua excelência colocou por terra toda a fundamentação da classe optométrica exposta na ADPF nº 131 que tramita perante o Supremo Tribunal Federal, conforme será demonstrado a seguir.

A arguição de descumprimento de preceito fundamental – ADPF nº 131, que tramita perante o STF, questiona os Decretos Presidenciais nº 20.931/32 (artigos 38, 39 e 41) e nº 24.492/34 (artigos 13 e 14) que fazem restrições ao exercício profissional dos optometristas. Sustenta a arguição, em síntese, que os dispositivos atacados não foram recepcionados pela atual Constituição Federal de 1988, porque os valores sociais do trabalho e a garantia da liberdade de ofício ou profissão são ofendidos pelos dispositivos impugnados, uma vez que estabelecem ser ato privativo da classe médica o atendimento à saúde visual primária, uma das principais atribuições profissionais dos optometristas.

Argumenta ainda que os princípios e garantias fundamentais têm eficácia contida e aplicabilidade imediata, “restando inequívoco que a ausência de regulamentação da profissão de optometrista não pode ser vista como óbice ao seu exercício” e, nessa linha, entende ser livre o exercício de ofício não regulamentado ou não proibido por lei¹.

Uma vez reconhecida a legalidade e a receptividade dos decretos pela Constituição Federal, a ADPF nº 131 perdeu seu objeto, que visa exatamente a “não receptividade” dos decretos pela Carta Magna. É como se a classe optométrica mudasse de direção e passasse a reconhecer que a profissão existe e está regulamentada pelos decretos de 1932 e 1934. Há confissão, judicial ou extrajudicial, quando a parte admite a verdade de fato contrário ao seu interesse e favorável ao do adversário, nos termos do artigo 389 do Código de Processo Civil.

Ainda que se fale que o projeto de lei apresentado é uma iniciativa isolada de um membro da Câmara dos Deputados e que o proponente não faz parte da Frente Parlamentar da Optometria lançada em 22/08/2019, por certo que o processo legislativo é de inteiro conhecimento da respectiva classe.
Por outro lado, para entender um pouco mais sobre o assunto, passamos a discorrer sobre a ADPF nº 131 e os detalhes processuais desta ação constitucional que tramita perante a mais alta corte do país.
A arguição de descumprimento de preceito fundamental é regida pela Lei 9.882/99 e tem por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público.
Já a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF nº 131, com relatoria do ministro Gilmar Mendes, foi proposta no ano de 2008 pelo Conselho Brasileiro de Óptica e Optometria e questiona, como dito acima, os Decretos Presidenciais nº 20.931/32 (artigo 38, 39 e 41) e nº 24.492/34 (artigos 13 e 14) que fazem restrições ao exercício profissional dos optometristas. Pretende o CBOO, portanto, a declaração de inconstitucionalidade dos decretos e sua não receptividade pela nova ordem constitucional.
Instada a se manifestar, a Advocacia Geral da União sustentou ao STF que a legislação brasileira não impede exercício profissional de nenhuma categoria de trabalhador, inclusive na área de saúde, “desde que atendidos os requisitos legais”.
Ainda segundo a AGU, os decretos que regulamentam a optometria em nosso país foram recepcionados pela Constituição Federal, conforme já manifestado pelo próprio STF ao declarar inconstitucional o Decreto 99.678/90, que havia revogado os diplomas de 1932 e 1934.
Na esteira do raciocínio jurídico, os decretos, além de recepcionados pela nova ordem de 1988, também estariam alinhados com o artigo 5º, XIII e com o artigo 22, XVI do Texto Constitucional. No primeiro dispositivo, o legislador constituinte autorizou a liberdade profissional, porém, desde que atendidas as qualificações que a lei estabelecer. Já o art. 22, XVI descreve ser competência privativa da união legislar sobre condições para o exercício de qualquer profissão.
Se os decretos de 1932 e 1934 foram recepcionados como leis ordinárias e se os mesmos já disciplinam a profissão de médico e de optometrista, não há que se falar em ausência de legislação ou mesmo em inconstitucionalidade, como proposto pelo CBOO. Portanto, fala-se em qualificações necessárias.
Na mesma esteira, a AGU assevera que apesar da grade curricular de alguns cursos de optometria constar disciplinas médicas, isso não implica autorização para o exercício da medicina, pois, não possuem formação completa e nem se sujeitam ao órgão fiscalizador, que é o Conselho Federal de Medicina.
Nem mesmo a expressão “Conselho” pode ser utilizada pelo CBOO, pois, não se trata de autarquia federal, não tendo sido criada por lei, mas, sim, uma associação que congrega alguns profissionais, conforme restou decidido recentemente na via judicial.
Em outro norte, o argumento de falta de médico para a atenção primária também não se sustenta. Há no Brasil cerca de 1 médico oftalmologista para cada 15.000 habitantes. A Organização Mundial de Saúde sugere que em países de primeiro mundo esse número seja de 1 médico oftalmologista para cada 20.000 habitantes.
O suposto atendimento à atenção primária como forma de solucionar o problema visual da população carente também não pode proceder, já que recorrer a optometria para suprir a suposta falta de médicos oftalmologistas poderia agravar ainda mais a situação da população submetendo-a a “riscos de diagnósticos e prescrições equivocadas”.
Não há que se tratar com desigualdade as populações menos favorecidas e mais distantes do que aquelas que vivem em grandes centros, sob pena de afronta ao princípio da isonomia, disciplinado no artigo 5º, caput, da Constituição Federal.
Ademais, outro argumento trazido pelo CBOO na ADPF nº 131 é que a Classificação Brasileira das Ocupações, regulamentada pela Portaria nº 397 do Ministério do trabalho e Emprego deferiu aos optometristas as atividades vedadas nos decretos 20.931/32 e 24.492/34.
Também não se sustenta o argumento trazido pelo CBOO na ADPF nº 131. O próprio Ministério do Trabalho e Emprego, em manifestação processual nos autos da arguição sob comento, reconhece sua ilegitimidade para regular as profissões, atribuindo a competência ao Congresso Nacional para legislar sobre o assunto, fazendo menção ao artigo 22, XVI da Constituição Federal.
Soma-se a isso o fato de que uma portaria ministerial é ato normativo secundário que não tem o condão de revogar nenhuma das espécies normativas elencadas no artigo 59 da Constituição Federal e que compreendem o processo legislativo pátrio.
A conclusão da AGU é pela total improcedência dos pedidos aduzidos pelo CBOO na ADPF nº 131.
A Controladoria Geral da União, por sua vez, também intimada a se manifestar, contestou os argumentos do CBOO e destacou que a competência para estabelecer requisitos relativos ao exercício profissional é atribuição da União, ratificando o entendimento sobre o artigo 22, XVI da Constituição Federal. A CGU também opina pela improcedência dos pedidos feitos pelo CBOO na ADPF nº 131.
Esse foi um dos argumentos jurídicos que fundamentam a Ação Direta de Inconstitucionalidade que tramita perante o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo em que o Conselho Brasileiro de Oftalmologia – CBO e a Associação de Oftalmologia de Campinas e Região – AOC discutem a sanção a um projeto de lei daquele município que autoriza a concessão de alvará e abertura de gabinetes optométricos.  Por força de liminar já deferida, a eficácia da lei sancionada está suspensa, até que se julgue o mérito da ação.
Ademais, o parecer do Ministério Público Federal na ADPF nº 131 seguiu a linha da improcedência dos órgão que lho antecederam, aduzindo que “a arguição não merece provimento”. O ponto chave da manifestação ministerial está também nos artigos 5º, XIII e no artigo 22, XVI já citados acima.
Nas palavras do Procurador Geral, fazendo referência a Celso Antônio Bandeira de Melo, “segue-se que há plena liberdade de trabalho, ofício ou profissão quando não forem imprescindíveis qualificações profissionais específicas para desempenhá-lo.(…) Assim, o advogado, o médico, o engenheiro, para exercerem as correspondentes profissões necessitam de cursos superiores e, às vezes, até mesmo, de estágios ou exames perante o respectivo sodalício. Com efeito, aí trata-se de proteger a coletividade, impedindo que qualquer sujeito se apresente como apto a defender a honra, a liberdade, o patrimônio das pessoas ou a tratar-lhe a saúde ou a vida ou, então, pretender-se a garantir que só sujeitos especializados assumam a responsabilidade pela construção de casas, edifícios, barragens, centrais elétricas, etc., a fim de evitar que, efetuados sob comando de pessoas inaptas, venham a ruir, incendiar-se, ou de qualquer modo causar danos a pessoas e bens”.
Ainda segundo a PGR, a questão não é reconhecer que os optometristas recebem formação em curso superior reconhecido, mas, que essa formação não assegura o desempenho das funções que os decretos de 1932 e 1934 vedam expressamente. A formação superior serve para melhorar o desempenho de sua atuação, mas não lhe defere a permissão para atos e procedimentos exclusivos da área médica.
E aponta ainda o Procurador Geral da República que “no presente feito está atendida a racionalidade da restrição imposta aos optometristas justamente por se basear em uma necessidade científica: o diagnóstico médico da natureza e condições das ametropias”.
Saber o que se passa por traz de uma ametropia é função privativa de médico que não se pode atribuir a nenhum outro profissional, sob pena de se colocar em risco a saúde ocular da população.
Nos termos do artigo 4º, X da Lei 12.842/13 (Lei do Ato Médico), a determinação do prognóstico relativo ao diagnóstico nosológico é ato privativo de médico, sendo certo que diagnóstico nosológico é a determinação da doença que acomete o ser humano, definida como interrupção, cessação ou distúrbio da função do corpo, sistema ou órgão.
E complementa a PGR informando que “de fato, em que pesem os esforços do arguente (CBOO) em demonstrar que a identificação das chamadas ametropias (vícios de refração) não compreendem nenhum ato de diagnóstico médico, não há como tratar separadamente estes vícios e as doenças oculares ou doenças com repercussões oculares”.
Não há como atribuir aos profissionais não médicos a capacidade de atribuir o que são os casos que deverão ser encaminhados aos médicos oftalmologistas e quais não o são. Esses profissionais não detêm a capacitação técnica para tanto, justamente por não deter conhecimentos científicos que somente são adquiridos em cursos de medicina e especialização na área oftalmológica.
E conclui que “não há como tornar estanque o diagnóstico de ametropias (vícios de refração) e doenças oculares e mesmo de outros órgãos que possuem repercussão ocular. Para que sejam indicadas lentes de correção, há de ser excluído o diagnóstico destas doenças, o que é de responsabilidade médica. Por isso, entende-se ser razoável a legislação ainda em vigor, que estabelece as citadas restrições à atuação do optometrista, impedindo que realize o exame de acuidade visual e prescreva lentes corretivas”.
O parecer da PGR na ADPF nº 131também é pela improcedência dos pedidos.
Da breve exposição acima, é possível extrair-se algumas conclusões:
I. O Projeto de Lei nº 4.481/2019 da lavra do Deputado Enéias Reis e que visa a revogar o artigo 38 do Decreto 20.931/32 e o artigo 17 do Decreto 24/3.4924 reconhece a vigência, validade e eficácia desses diplomas legais e sua receptividade pela Constituição Federal;
II. Ao reconhecer a vigência, validade e eficácia desses diplomas normativos e sua recepção constitucional, a optometria confessa e admite a verdade de fato contrário ao seu interesse colocando por terra a argumentação trazida pelo CBOO na ADPF nº 131;
III. Tanto a AGU, quanto a CGU e a PGR pugnam pela improcedência da ADPF nº 131, reconhecendo e amparando sua fundamentação nos artigos 5º, XIII e 22, XVI da CF/88;
IV. A existência e o reconhecimento de cursos superiores em optometria não atribuem a esse profissional a capacidade e a competência privativa de médico oftalmologista.
V. A Portaria 397 do Ministério do Trabalho e Emprego, por ser ato normativo secundário, não revogou as disposições dos Decretos 20.931/32 e 24.492/34;
VI. A atenção primária da saúde visual e o diagnóstico de ametropias não podem ser atribuídas a qualquer outro profissional que não seja o médico oftalmologista, sob pena de se agravar ainda mais a situação da população, submetendo-a a riscos de diagnósticos e prescrições equivocadas;
VII. É livre o exercício de qualquer profissão, desde que atendidas as qualificações que a lei estabelecer. Os decretos 20.931/32 e 24.492/34 estão em pleno vigor e estabelecem o que pode e o que não pode ser feito pelo optometrista.

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