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22 de novembro de 2023

Erro Médico, Evento Adverso, Fato do Serviço e Insatisfação do Paciente

Algumas expressões utilizadas em quaisquer áreas têm uma conotação inicial que, se forem analisadas com maior profundidade e detalhamento, inclusive sob prisma diferente, revelarão outro sentido. A expressão erro médico, por exemplo, tem sido utilizada erroneamente, tomada de maneira muito ampla como todo acontecimento que envolva situações de responsabilidade civil na área da saúde. Uma medicação mal ministrada por um médico que causa dano ao paciente recebe a mesma classificação de uma medicação que é mal aplicada no paciente por um enfermeiro. Tanto a situação do médico que indica medicação errada quanto a situação do enfermeiro que troca a medicação a ser aplicada costumam receber o mesmo tratamento sob a ótica do direito, sendo ambas situações classificados equivocadamente como hipótese de erro médico.

Até mesmo a classificação dada livremente pela rede mundial de computadores não traduz uma distinção técnica, anunciando expressamente que o erro médico é uma falha na prestação do serviço que pode ser praticado por outro profissional¹. É como dizer que haverá erro médico quando o enfermeiro aplica medicação errada no paciente, para continuar no exemplo pontado acima. Por certo que não pensamos assim.

Outras expressões utilizadas como sinônimas de erro médico são “evento adverso em saúde” e “fato do serviço em saúde”. O evento adverso em saúde é classificado como um incidente que resultou um dano à saúde. Tanto a queda de um leito quanto a queda de um visitante no hospital ocasionada pelo piso escorregadio estariam enquadradas nessa hipótese. O fato do serviço em saúde, também definido como a circunstância não prevista capaz de gerar um resultado danoso, traduz o fenômeno da responsabilidade civil sob a ótica do Código de Defesa do Consumidor, tratando o paciente como um destinatário final dos serviços de saúde colocados no mercado.

Todas as hipóteses mencionadas acima são espécies do gênero responsabilidade civil na área da saúde e podem denotar pontos de convergência. Porém, sob o prisma jurídico terão desdobramentos distintos, passíveis de respostas jurídicas próprias sendo, portanto, tratadas levando em conta a sua singularidade, contextualizando-as atentando a todas nuances que se fizerem presentes.

Mais uma vez exemplificamos. Se um paciente recebe uma medicação errada de seu médico haverá hipótese de erro cuja responsabilidade será apurada mediante a verificação de culpa. Se esse mesmo paciente recebe uma medicação errada aplicada por um enfermeiro a responsabilidade será objetiva por parte do hospital, amparada na ideia de risco da atividade desenvolvida pela entidade nosocomial.  As respostas serão distintas quanto ao desfecho, apesar de serem tratadas comumente como hipóteses de erro médico.

Vejam a resposta dada pelo Superior Tribunal de Justiça em hipótese de falha na prestação do serviço envolvendo entidade hospitalar:

 


CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. FALHA NA PRESTAÇÃO DE SERVIÇO MÉDICO-HOSPITALAR. DANOS MORAIS. VALOR. REEXAME DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO DOS AUTOS. INADMISSIBILIDADE. INCIDÊNCIA DA SÚMULA N. 7/STJ. DECISÃO MANTIDA.

1. O recurso especial não comporta o exame de questões que impliquem revolvimento do contexto fático-probatório dos autos, a teor do que dispõe a Súmula n. 7/STJ.

2. No caso concreto, o Tribunal de origem concluiu pela ocorrência de falha na prestação de serviços por parte do hospital, a atrair o dever de indenizar pelos danos morais. Decidir de modo contrário demandaria o reexame das provas produzidas nos autos, o que é vedado em recurso especial.

3. Somente em hipóteses excepcionais, quando irrisório ou exorbitante o valor da indenização por danos morais arbitrado na origem, a jurisprudência desta Corte permite o afastamento do referido óbice, para possibilitar a revisão. No caso, o valor estabelecido pelo Tribunal de origem não se mostra excessivo, a justificar sua reavaliação em recurso especial.

4. Agravo interno a que se nega provimento.² (grifamos)


 

Em outro julgamento, o Superior Tribunal de Justiça fez a distinção do papel de cada ator envolvido e da responsabilidade civil subjetiva aplicada a um cirurgião dentista:

 


AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. DECISÃO DA PRESIDÊNCIA. RECONSIDERAÇÃO. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS CUMULADA COM DANOS MATERIAIS E ESTÉTICOS. IMPLANTE DENTÁRIO. CLÍNICA ODONTOLÓGICA E DENTISTAS. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA. LAUDO PERICIAL COMPROVANDO IMPERÍCIA E NEGLIGÊNCIA DOS DENTISTAS. RESPONSABILIDADE CONFIGURADA. DEVER DE INDENIZAR DEMONSTRADO. AGRAVO INTERNO PROVIDO PARA CONHECER DO AGRAVO E DAR PROVIMENTO PARCIAL AO RECURSO ESPECIAL.

1. No tocante à responsabilidade civil de entidades hospitalares e clínicas, esta Corte de Justiça firmou orientação de que: “(i) as obrigações assumidas diretamente pelo complexo hospitalar limitam-se ao fornecimento de recursos materiais e humanos auxiliares adequados à prestação dos serviços médicos e à supervisão do paciente, hipótese em que a responsabilidade objetiva da instituição (por ato próprio) exsurge somente em decorrência de defeito no serviço prestado (artigo 14, caput, do CDC); (ii) os atos técnicos praticados pelos médicos, sem vínculo de emprego ou subordinação com o hospital, são imputados ao profissional pessoalmente, eximindo-se a entidade hospitalar de qualquer responsabilidade (artigo 14, § 4º, do CDC); e (iii) quanto aos atos técnicos praticados de forma defeituosa pelos profissionais da saúde vinculados de alguma forma ao hospital, respondem solidariamente a instituição hospitalar e o profissional responsável, apurada a sua culpa profissional. Nesse caso, o hospital é responsabilizado indiretamente por ato de terceiro, cuja culpa deve ser comprovada pela vítima de modo a fazer emergir o dever de indenizar da instituição, de natureza absoluta (artigos 932 e 933 do Código Civil), sendo cabível ao juiz, demonstrada a hipossuficiência do paciente, determinar a inversão do ônus da prova (artigo 6º, inciso VIII, do CDC)” (REsp 1.145.728/MG, Rel. p/ acórdão Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 28/06/2011, DJe de 08/09/2011).

2. No caso dos autos, o Tribunal a quo, com fundamento na perícia odontológica realizada, concluiu que houve negligência e imperícia dos dentistas na execução do tratamento de implante dentário da parte apelada, estando configurada a responsabilidade solidária da clínica juntamente com os dentistas que executaram o tratamento.

3. Não se evidencia o intuito de procrastinação na conduta processual da parte recorrente, visto que foi oposto apenas um recurso de embargos contra o acórdão proferido pelo Tribunal local, o que, a princípio, não implicaria aplicação da multa do art. 1.026, § 2º, do CPC.

4. Agravo interno provido para reconsiderar a decisão agravada e, em novo exame, conhecer do agravo e dar parcial provimento ao recurso especial, apenas para afastar a multa do art. 1.026, § 2º, do CPC/2015.³ (grifamos)


 

Portanto, a resposta dada na via judicial poderá ser distinta para cada parte envolvida. Ao hospital ou clínica caberá o exame fático à luz do serviço e das obrigações assumidas limitando-se ao fornecimento de recursos materiais e humanos auxiliares adequados à prestação dos serviços e à supervisão do paciente. Sua responsabilidade é objetiva e exsurgirá se houver falha na prestação do serviço. Já os profissionais liberais (médicos) envolvidos no julgamento acima tiveram sua responsabilidade civil analisada à luz da teoria subjetiva, sendo necessária a demonstração de que agiram de forma culposa, negligência e imprudência, no caso apresentado.

Em outro norte, é possível ainda que as questões apresentadas na via judicial digam respeito a insatisfação do paciente, hipótese em que não há qualquer atuação em desacordo aos preceitos técnicos ou éticos dos profissionais da área da saúde. É um assunto recorrente para quem atua na área do direito voltada para a saúde, se defrontando com este cenário sucessivas vezes. A insatisfação do paciente ocorrerá quando o resultado de um procedimento for distinto de sua expectativa ou quando, apesar de não anunciado, era por ele esperado um resultado diverso.

A ideia de que o cliente tem sempre razão aqui não se aplica. Este conceito vigorou numa posição refratária por muito tempo, expressando que, em qualquer situação, prevaleceria a voz e o sentimento de quem usufruiu de um determinado serviço. Não negamos que, a rigor, isso não foge à regra, mas fazer uma associação indelével com hipótese de erro, pressupondo que toda insatisfação é produto de alguma atitude inábil, da falta de preparo ou da ausência do devido comprometimento, poderá levar à uma grande frustração ao paciente, podendo acarretar um prejuízo ainda maior, se a situação não for avaliada corretamente e ele for condenado a indenizar o advogado da parte contrária em eventual ação judicial. É por esse motivo que todas as circunstâncias direta e indiretamente relacionadas ao evento deverão ser contempladas com pleno critério, evitando se ater exclusivamente à superficialidade dos fatos em questão e da má avaliação casuística apontada pelo paciente.

Em análise de situação fática, o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais assim decidiu:

 


EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO INDENIZATÓRIA – DANOS MORAIS E MATERIAIS – ERRO MÉDICO – RINOPLASTIA – ALEGAÇÃO DE RESULTADO INSATISFATÓRIO – PERÍCIA MÉDICA – CULPA DO PROFISSIONAL MÉDICO NÃO DEMONSTRADA – RESPONSABILIDADE CIVIL AFASTADA – INDENIZAÇÃO – DESCABIMENTO – MANUTENÇÃO DA SENTENÇA QUE SE IMPÕE. A responsabilidade civil do médico, em regra, é subjetiva, regulada pelo art. 186 do CCB e pelo art. 14, §4º do CDC. Em se tratando de tratamento estético, configura-se a obrigação de resultado, conforme entendimento do STJ. Não obstante tais premissas, em casos como o dos autos, inafastável que reste satisfatoriamente comprovado de que houve, por parte do profissional médico, conduta irregular, decorrente de negligência, imperícia ou imprudência e que dela decorreram danos físicos e estéticos à paciente que se submeteu ao procedimento cirúrgico estético, e não apenas, um mero sentimento de insatisfação com o resultado alcançado. Uma vez que a perícia técnica produzida nos autos não comprovou a existência de falha da prestação de serviços pelo profissional médico, mas, apenas, que a expectativa da paciente não poderia ter sido alcançada, de pronto, em razão das suas próprias características físicas, não há falar em responsabilidade civil ou dever de indenizar do requerido.4 (grifamos)


 

Mesma postura deverá ser adotada na ocorrência de algum evento em que teremos diversos “atores” atuando no mesmo roteiro – médico, plano de saúde, operadora e até hospital – quando se fará necessário avaliar e identificar a responsabilidade civil de cada um. Este procedimento exigirá uma apurada visão dos fatos, reunindo informações que contribuam para consolidar o escopo geral. Este esforço, exaustivo muitas vezes, será imprescindível para quem se propõe a fazer o direito prevalecer embasado nas vertentes que a lei estabelece. Caso contrário, o que vigorará serão atitudes levianas, intempestivas, tendo o “achismo” como prerrogativa que acabará desvirtuando do seu propósito legítimo e gerando ainda mais aborrecimento ao paciente.

A ideia desse trabalho é levar ao interlocutor um pouco mais de conhecimento sobre a resposta dada pelos tribunais em vários tipos de demandas que envolvam a saúde. Temos convicção da necessidade pedagógica na formação médica e odontológica e de sua pertinência, além do desconhecimento geral, muitas vezes, que envolvem a prática da medicina e da odontologia sob o prisma da responsabilidade civil. Quanto mais se debater o tema e em linguagem acessível, nas várias instâncias possíveis, melhor clarificaremos o assunto e assim cumpriremos a nossa métrica de disponibilizar meios para que todos possam ter ciência da matéria com maior amplitude e transparência possível. Conhecer o problema é prevenir situações e circunstâncias e evitar desdobramentos indesejáveis, adotando medidas e posturas eficientes e eficazes.

 


¹ O erro médico é um defeito na prestação do serviço de saúde que venha a causar dano ao paciente. Apesar do nome, ele não é cometido exclusivamente por um médico, pode decorrer da atuação de outros profissionais como enfermeiros, dentistas, nutricionistas ou até mesmo da administração do ambiente hospitalar.

² STJ – T4 – Quarta Turma – Ministro Antônio Carlos Ferreira – Julgado em 15/06/2020.

³ STJ – T4 – Quarta Turma –  Ministro Raul Araújo – Julgado em 01/06/2020.

4 TJMG – 17ª Câmara Cível – Desembargador Luciano Pinto – Julgado em 04/02/2016.

 

*Artigo publicado por Valério Ribeiro na edição nº401 da Revista Em Voga.

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