É comum a realização de eventos de saúde com o foco nas deficiências do setor público no atendimento assistencial. Sob o argumento das filas de cirurgias e exames, algumas entidades, com o apoio do próprio poder público, realizam os chamados mutirões em que num único dia e em um mesmo local são atendidos vários pacientes.
Na área oftalmológica, as cirurgias de catarata têm sido realizadas em larga escala. Além dos mutirões cirúrgicos, também ocorrem atendimentos coletivos com exames de vista realizados por profissionais não médicos, com venda simultânea de lentes de contato e grau. Mais comum ainda são esses atendimentos serem rodeados de políticos e de empresários, em busca de votos e lucro fácil.
Para os políticos, dizerem que estão solucionando o problema de visão de seu município irá lhe gerar apoio e destaque frente aos eleitores. Para os empresários, uma oportunidade de vender seus serviços e faturar rápido com as vendas casadas. Práticas que contrariam o Decreto 24.492/34 e o Código de Defesa do Consumidor.
Ademais, não obstante a boa-vontade de alguns poucos bem intencionados com a solução das demandas sociais, é preciso identificar alguns riscos a que estão expostos os pacientes e algumas condutas antiéticas por parte dos médicos assistentes que se submetem a esse tipo de atendimento.
Em 2014, pelo menos 12 pessoas ficaram cegas, após passarem por um atendimento coletivo no Hospital Municipal de Barueri, na grande São Paulo. Em 2016, no Hospital de Clínicas Municipal de São Bernardo do Campo, 22 pacientes contraíram endoftalmite e 18 deles perderam a visão em decorrência da contaminação bacteriana. Esses são alguns exemplos dos riscos trazidos por essa forma assistencial.
É bom lembrar que de acordo com o inciso X do capítulo I do Código de Ética Médica, O trabalho do médico não pode ser explorado por terceiros com objetivos de lucro, finalidade política ou religiosa. O que se verifica em boa parte dos atendimentos é justamente uma subsunção a esse dispositivo deontológico. No interior do país os atendimentos costumam ocorrer em igrejas e câmaras municipais, com o apoio das secretarias municipais de saúde.
Do ponto de vista profissional e ético, o médico que se acumplicia em atendimentos de duvidosa transparência, inclusive em Estados da federação distintos daquele em que está autorizado pelo CRM a exercer sua função, além dos riscos profissionais sob a ótica da responsabilidade civil, também responde deontologicamente frente aos seus pares, nos termos da Resolução CFM 1.931/2009.
Inicialmente vale lembrar que o médico, em atendimento transitório, certamente abandonará seu paciente aos cuidados de outro médico, já que não retornará ao município após o mutirão, incorrendo na prática descrita no artigo 36 do diploma moral. A ele é vedado o abandono do paciente. Nos eventos coletivos, a relação médico/paciente simplesmente não existe e com frequência as partes se encontram já no momento da cirurgia.
Nos mutirões de exame, há uma verdadeira infração aos artigos 12 e 13 do decreto 24.492/34. De acordo com o artigo 12, nenhum médico oculista, na localidade em que exercer a clínica, nem a respectiva esposa, poderá possuir ou ter sociedade para explorar o comércio de lentes de grau, sendo certo que é expressamente proibido ao proprietário, sócio gerente, ótico prático e demais empregados do estabelecimento, escolher ou permitir escolher, indicar ou aconselhar o uso de lentes de grau, sob pena de processo por exercício ilegal da medicina, além das outras penalidades previstas em lei. Tudo isso por uma razão muito simples. Quem examina terá o interesse de vender. Os mutirões de exames são realizados com esse foco.
Ademais, nos termos do artigo 49 do Código de Ética Médica, é vedado ao médico assumir condutas contrárias a movimentos legítimos da categoria médica com a finalidade de obter vantagens. Nesse matiz, também é vedado ao médico exercer a profissão com interação ou dependência de farmácia, indústria farmacêutica, óptica ou qualquer organização destinada à fabricação, manipulação, promoção ou comercialização de produtos de prescrição médica, qualquer que seja sua natureza, nos termos do artigo 68 da Resolução 1.931/2009.
O que se percebe, é que não obstante a vedação legal, tanto o poder público quanto alguns profissionais da área médica preferem fazer vista grossa. Àqueles têm rendido processos por responsabilidade civil. A estes, além das indenizações, poderão ser passíveis de processo ético junto aos conselhos de classe.
*Artigo publicado por Valério Ribeiro na edição nº330 da Revista Em Voga.
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