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30 de abril de 2021

O PLANO É NÃO TER PLANO

Segundo dados de pesquisa recente do Núcleo de Estudos e Análises – NEA da Universidade Federal do Triângulo Mineiro, as despesas com saúde em nosso país, no ano de 2020, consumiram cerca de R$692,88 bilhões, ou seja, de 9,3% de todo o PIB anual. Desse percentual, cerca de R$171,50 bilhões, ou 24,75%, são gastos particulares e R$216,97 bilhões, ou 31,31% são gastos com a saúde suplementar (planos privados, seguradoras, autogestão etc). De uma primeira análise é possível perceber que os gastos particulares com saúde alcançam quase todo o montante das despesas consumidas pelos usuários dos planos de saúde.

Nesse sentido, sabemos que de todo o montante despendido na saúde suplementar, apenas cerca de 8% são repassados aos profissionais médicos e cirurgiões dentistas, ao passo que as despesas particulares, ao menos em uma primeira leitura, não contam com a intermediação do atravessador (operadoras) da mão de obra especializada. Isso nos mostra que “há vida fora dos planos de saúde”.

Por outro lado, a remuneração médica vem migrando ano a ano para as mãos daquele que controla sua atividade (atravessador). O valor de 1 CH (coeficiente de honorários) da Tabela AMB 1992 valia R$0,51 (cinquenta e um centavos) em maio de 1986. Quando atualizamos matematicamente esse mesmo valor pelo IGPM atual, constatamos que 1 CH (coeficiente de honorários) vale hoje (abril de 2021) R$4,03 (quatro reais e três centavos). A consulta médica, se fosse atualizada ao longo dos anos pelo índice acima, custaria hoje o valor de R$403,00 (quatrocentos e três reais), ou seja 100 CH’s.

Considerando os valores acima e os valores do CH da Tabela AMB/92 é possível perceber que uma ruptura de manguito deveria custar R$2.015,00 (dois mil e quinze reais), uma descompressão medular deveria custar R$6.045,00 (seis mil e quarenta e cinco reais), uma reconstrução de ligamento cruzado deveria custar R$4.030,00 (quatro mil e trinta reais), uma endoscopia deveria custar R$3.224,00 (três mil e duzentos e vinte e quatro reais), uma vitrectomia via pars plana deveria custar R$5.843,50 (cinco mil e oitocentos e quarenta e três reais e cinquenta centavos) e uma cirurgia intracraniana deveria custar R$10.075,00 (dez mil e setenta e cinco reais). Estamos muito longe dessa realidade.

Todos os valores acima apontados consideram apenas os honorários médicos baseados no CH (coeficiente de honorários) da tabela AMB/92. Alguns dirão que a tabela AMB está ultrapassada pela CBHPM ou por outro indexador que queira ser substituído. Porém, o que importa perceber é o quanto foi perdido da remuneração médica ao longo de quase três décadas e desviado para os tomadores dos serviços (atravessador). Uma consulta médica é remunerada por alguns planos de saúde ao valor de R$30,00 (trinta reais). Durante anos os médicos foram deixando que sua remuneração fosse desviada para outros “players”, para usar uma palavra da moda em gestão.

Por outro lado, as modalidades de remuneração médica vêm sendo alvo de grande debate. O modelo fee for service, ou pagamento por serviços (conta aberta), vem sofrendo franco ataque ao argumento de gastos exagerados, superfaturamento de preços e abusos na solicitação de exames. Quanto mais se gasta, maior a remuneração do prestador, segundo o debate. Já o modelo de remuneração por capitation, baseado no número de vidas a serem atendidas, remunera o prestador a preço fixo. Nesse último modelo, sem embargo do poder de monopsônio das operadoras, quanto menos o prestador atender, maior será o seu resultado financeiro. O risco e a escolha perversa de quem será atendido é transferido para o serviço, que passa a dificultar os atendimentos e procedimentos complexos com vista à sobra de caixa no final do mês. Em meio aos modelos prospectivos e o retrospectivo fee for service são também apresentados os modelos bundle, que considera um ciclo de cuidado e não apenas procedimentos isolados, como nos tratamentos oncológicos, o modelo de orçamento global, em que um serviço recebe um valor certo para resolver todas as demandas do tomador, ou ainda o pagamento por performance, que nada mais é que o fee for service com um adicional de produtividade.

Feitas essas considerações, ouve-se muito que agora a preocupação do mercado é a melhoria do atendimento da saúde baseada em valor, traduzindo nesse conceito a ideia de que os profissionais deverão melhorar a qualidade de seu atendimento e comprovar a melhoria com capacitação e índices de acreditação e de qualidade.



Pois bem. O mercado retirou grande parte da remuneração dos profissionais. Em alguns procedimentos e exames, os prestadores recebem cerca de 5% daquilo que deveriam receber. Não satisfeitos, os planos agora dizem que os profissionais deverão melhorar a qualidade do serviço que ele, tomador, destruiu ao longo dos últimos 30 anos. A “re-humanização da medicina” proposta pelas operadoras sob os mais variados modelos de remuneração parte da ideia de que os profissionais precisam dar “valor – qualidade” ao trabalho que desempenham, como se eles, prestadores, nunca tivessem tido a preocupação com seus pacientes. É incrível perceber que o mercado que desumanizou a medicina agora pretende “re-humanizá-la” a baixíssimo custo, dizendo que são os profissionais que não entregam a qualidade necessária. É uma absoluta distorção da realidade.

Afora a redução dos honorários, os médicos foram desviados de sua função para preencher uma infinidade de laudos e justificativas de procedimentos, reduzindo os custos de sua atividade para a operadora. Os médicos não percebem que enquanto estão preenchendo documentos estão gerando economia para a operadora, que detém a chave do cofre.

Não satisfeitos, o lobby das operadoras, com franco auxílio da Agência Nacional de Saúde, aprovou a RN 424, que trata das juntas médicas e odontológicas. Sob a afirmação falsa de preocupação com o usuário, começaram agora a colocar em dúvida o atendimento assistencial do prestador frente ao seu próprio paciente, visando a postergar, restringir ou mesmo negar o atendimento. Todas as vezes que uma operadora instaura uma junta médica ou odontológica, ela coloca em dúvida a qualidade do seu próprio preposto, em autêntica depreciação da qualidade assistencial que ela mesma oferece. Além disso, macula subjetivamente o profissional, já que este passa a sofrer uma série de pedidos de instauração de juntas, servindo os indicadores como franco mecanismo de depreciação qualitativa. O pior é que poucas pessoas conseguem entender o que de fato se passa por trás desses mecanismos de duvidosa ética e eficiência técnica. Como pedir ao médico um atendimento clínico de 1 hora a preço de R$30,00? Isso sem considerar os encargos. Será mesmo esse o objetivo dos planos ao dialogar sobre modelos de remuneração?

Segundo o Princípio de Pareto, apenas 20% daquilo que você produz responde por cerca de 80% do resultado obtido. Nessa ordem de ideias, os médicos precisam entender que nenhum profissional sai da faculdade com ganhos estratosféricos. Bons profissionais demandam tempo de dedicação e estudos e uma boa qualidade do atendimento assistencial a que se propõem. Achar que a dedicação profissional exclusiva a uma ou outra operadora é a saída para uma vida profissional segura é franquear ao tomador de serviços a oportunidade da escravização econômica. Os gestores dos planos de saúde sabem muito bem como isso funciona. Os médicos não.

É preciso fazer o processo de “re-humanização da medicina”, porém, de maneira autônoma, sem a dependência predatória dos planos de saúde. A medicina sofre francos ataques por todos os lados. Dizer que a remuneração médica precisa evoluir para um tratamento humanizado é conversa fiada para desviar, uma vez mais, da ideia de remuneração justa para os profissionais. As operadoras, com explícito auxilio da autarquia federal da ANS, vêm fazendo isso há anos. A ANS já disse que não irá interferir no modelo de remuneração escolhido entre as partes, porém já disse que para ela o fee for service deve de fato ser substituído. Quem disse a ela, ANS, que esse modelo não funciona, senão as próprias operadoras, em suas conclusões de encontros e congressos em que se discute de onde tirarão mais dinheiro e aumentarão seus lucros. Não há um único encontro em que as operadoras discutam a melhoria da remuneração médica.

O grito de liberdade e independência precisa ser dado enquanto há tempo e com o necessário auxilio das entidades coletivas profissionais, a estimular, de maneira aberta, que as pessoas busquem alternativas para se cuidar. Sem médico não há saúde. Médicos isolados são presas fáceis nas mãos dos tomadores de serviços e sempre serão explorados pelos grandes conglomerados financeiros que, mais do que nunca, aportam em nosso país grandes somas financeiras. É chegada a hora. Independência ou morte.

Valério Augusto Ribeiro

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