TELEMEDICINA E A REVOGADA RESOLUÇÃO CFM 2.227/2018
O Conselho Federal de Medicina publicou no dia 13/12/2018 a Resolução 2.227/18 que definia e disciplinava a telemedicina como forma de prestação de serviços médicos mediados por tecnologia. Antes mesmo de sua entrada em vigor e durante a vacatio legis a resolução foi revogada pelo Conselho, em sessão plenária extraordinária realizada em 26 de fevereiro de 2019.
Uma leitura mais acurada do diploma legal e já era possível perceber um distanciamento ainda maior da classe médica de seus pacientes, já submetidos a regimes de atendimentos e consultas disciplinados pelas operadoras de planos de saúde e grandes grupos empresariais.
A grande preocupação que tomou conta das entidades médicas contrárias à resolução, para citar um exemplo, se dava quanto aos preceitos éticos e legais quando o atendimento à distância fosse de fato intermediado por operadoras de planos de saúde. Mesmo no prazo de vacância da Resolução CFM 2.227/18 já havia operadora oferecendo triagem pediátrica por vídeo dentro de um aplicativo de smartphone.
Sem embargos dos necessários avanços tecnológicos, certo é que no § 4º do artigo 3º, a resolução informava textualmente que “a guarda das informações relacionadas ao atendimento realizado por telemedicina deverá atender à legislação vigente e estará sob responsabilidade do médico responsável pelo atendimento”.
Antes mesmo da revogação anunciada, já havíamos chamado a atenção para o fato de que o Conselho Federal de Medicina criou hipóteses de responsabilidade objetiva para o médico assistente, agravando ainda mais o risco de sua atividade, ao dizer ser ele o responsável pela guarda das informações relacionadas ao atendimento realizado sob essa modalidade.
Toda a cadeia de serviço que se inicia com o médico a distância e se dissipa pelos meios eletrônicos passaria a ser responsabilidade do médico assistente, que primitivamente examinou o paciente e que agora passaria a ser o responsável por toda a extensão eletrônica possível de seu atendimento. Alertamos ao dizer que o médico é uma ponta do atendimento na cadeia de serviços, mas, que por ela passaria a responder de maneira integral. Essa era a regulamentação do § 4º do artigo 3º da Resolução CFM 2.227/18.
Ainda sob o aspecto da responsabilização, o artigo 4º, § 5º informava que “em caso de participação de outros profissionais de saúde, estes deveriam receber treinamento adequado, sob responsabilidade do médico pessoa física ou do diretor técnico da empresa intermediadora”. Além de toda a carga de responsabilidade atrelado ao atendimento técnico, o médico assistente passaria também a ser o responsável pelo treinamento dos demais profissionais envolvidos. Não bastasse a carga de responsabilidade já existente no exercício da profissão, o Conselho Federal de Medicina trouxe para seus afiliados a responsabilidade pelos profissionais que o acompanham, desconsiderando por completo o grau de participação de cada um no evento danoso na medida de sua culpabilidade.
Já no artigo 8º, § 1º do revogado diploma, havia sido regulamentada a telecirurgia, com a seguinte redação: a telecirurgia é a realização de procedimento cirúrgico remoto, mediado por tecnologias interativas seguras, com médico executor e equipamento robótico em espaços físicos distintos. No § 1º a resolução informava que a telecirurgia somente poderia ser realizada em infraestrutura adequada e segura, com garantia de funcionamento de equipamento, largura de banda eficiente e redundante, estabilidade do fornecimento de energia elétrica e segurança eficiente contra vírus ou invasão de hackers. Seria possível imaginar um atendimento médico nos rincões do Brasil? A tecnologia, de fato, chegará a esses lugares?
Porém, de todos os dispositivos apontados da revogada Resolução CFM 2.227/18, o mais polêmico era o § 5º do artigo 8º. Referido dispositivo informava textualmente que o médico local deveria se responsabilizar pela intervenção cirúrgica em situação de emergência ou em ocorrências não previstas, tais como falha no equipamento robótico, falta de energia elétrica, flutuação ou interrupção de comunicação, etc. O médico local, aquele que realiza o atendimento, passaria a responder objetivamente pelas falhas nesse atendimento. Faltou luz, o médico seria o responsável. Faltou manutenção no equipamento, o médico seria o responsável. Ocorreu interrupção na comunicação, o médico seria o responsável. Pior, ao utilizar em cláusula aberta o termo “ocorrências não previstas”, a Resolução CFM 2.227/18 abriria margem para interpretar que qualquer intercorrência nesse tipo de atendimento à distância passaria a ser de responsabilidade do médico executor, eximindo os demais atores de qualquer outra carga de culpa se o atendimento desse errado.
Por fim, a Resolução CFM 2.227/18 informava ainda que que telemedicina foi originalmente criada como uma forma de atender pacientes situados em locais remotos, longe das instituições de saúde ou em áreas com escassez de profissionais médicos. Escassez é falta. Estava dito textualmente que a telemedicina foi idealizada para atender locais onde não há médico. Como realizar um atendimento médico sem médico? Como isso é possível? Daí podemos concluir que o Conselheiro Relator idealizou uma resolução com a expectativa de que haveria atendimentos médicos sem o médico.
A medicina avança e com ela as tecnologias. Porém, a tecnologia deverá se adequar ao serviço médico, e não o contrário. A telemedicina deverá se adaptar à forma como os serviços são prestados, em atenção e melhoria ao trabalho realizado pelo médico assistente. Jamais distanciar as partes ou eliminar a fidúcia existente. Em boa hora o Conselho Federal de Medicina recuou e revogou o diploma sob comento. A responsabilização objetiva do médico disciplinada no texto é algo contrário à própria legislação federal, disciplinada nos artigos 186 e 927 do Código Civil e no artigo 14, § 4º da Lei 8.078/0 (CDC). Preceitos e interesses mercantilistas e de grandes grupos não devem se sobrepor aos preceitos éticos da profissão (Inciso IX do CEM). É preciso um diálogo amplo, sobretudo com os médicos, através dos conselhos regionais e das entidades representativas da classe, para entender melhor suas realidades e suas preocupações, assim como as variáveis que poderão incidir nessa modalidade de atendimento assistencial. Não há como responsabilizar um médico por um serviço que não executa.