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9 de novembro de 2020

TELEMEDICINA: UMA VISÃO CRÍTICA

Muito se discute a respeito da possibilidade de atendimento médico remoto, assim como as vantagens e desvantagens dessa modalidade de assistência, confrontando opiniões de grupos econômicos, profissionais da saúde, entidades médicas e cidadãos, que tentam chegar a um consenso quanto a essa modalidade de atendimento médico assistencial.

Em poucas palavras e em breves considerações, buscamos jogar um facho de luz sobre o tema, evidenciando as vantagens e desvantagens da utilização da tecnologia inserida dentro da relação médico/paciente.

Como vantagens, anunciadas por um portal eletrônico que trata do assunto, constam pelo menos 5 pontos favoráveis, senão vejamos:

I. Otimização do tempo;

II. Aumento da capacidade de serviços;

III. Maior segurança;

IV. Custos menores;

V. Maior rapidez no tratamento;

Sem embargos de uma ou outra vantagem, certo é que a bandeira pela implantação desse sistema vem sendo levantada por nada menos que grandes grupos econômicos, que veem na modalidade uma boa chance de reduzir ainda mais seus custos assistenciais, em detrimento da sagrada relação fiduciária existente entre médico e paciente.

Otimizar tempo denota que a preocupação diz respeito não só aos deslocamentos, mas, também, àquele despendido pelo médico assistente quando da consulta com seu paciente.

Vivemos tempos sombrios de desumanização da medicina e aumento dos riscos de erro diagnósticos e terapêuticos. Se acelerar é bom para a operadora e para os demais partícipes do atendimento tecnológico, não o é para o médico assistente e para seu assistido. A celeridade só traz benefícios para o atravessador da mão de obra, que aumentará ainda mais seus lucros, em detrimento de uma boa prestação de serviços.

Além disso, continuará carreando a responsabilidade médica para o profissional, obrigado a atender mais rápido e a assumir o risco de sua conduta.

Já o suposto aumento da capacidade de serviços, também traduz a ideia de vantagens somente para as operadoras. Os profissionais da medicina se importam em bem atender. As operadoras em atender o maior número de pessoas e um menor espaço de tempo.

Aumentar a capacidade de serviços também é distanciar o médico do paciente e eliminar cada vez mais a relação fiduciária existente nessa profissão. Se é que o profissional do atendimento será realmente um médico. É possível imaginar a contratação de enfermeiros e técnicos para fazer algum tipo de “triagem”, para, em seguida, encaminhar ao profissional pretendido pelo usuário.

Vejam o que está se passando nas juntas médicas. Viraram fundamento para abusos na cobertura assistencial, sob a falsa ideia da legalidade da resolução ANS 424/2017. A exceção passa a ser a regra e transforma o atendimento médico e odontológico literalmente em uma verdadeira via crucis. Pior. Os profissionais desempatadores, não raras vezes, são os indicados pela operadora e tendem a trabalhar e a defender os interesses do tomador de seus serviços.

Ainda sobre as supostas vantagens, alguns indicam haver maior segurança no atendimento médico remoto. Não há. Conforme a revogada Resolução CFM 2.227/18, abaixo explicitada, sobrará responsabilidade ao médico assistente, que passa a atuar sob o manto da responsabilidade objetiva, sobretudo se durante o atendimento ocorrer qualquer tipo de intercorrência. O tema será abordado mais adiante.

Custos menores. Aqui a falácia é ainda maior. Os custos serão menores para as operadoras. Não para o prestador e muito menos para o usuário do plano, no atendimento à saúde suplementar.

As operadoras não repassam aos médicos assistentes sequer os reajustes aplicados aos usuários. Nem mesmo o reajuste sugerido pela ANS nos planos individuais é repassado ao médico assistente, não obstante as cláusulas de reajustes e a obrigatoriedade de aplicação inserida pela Lei 13.003/2014 no art. 17-A da Lei 9.656/98.

Aqui a denúncia é ainda mais grave. As operadoras possuem em carteira apenas 10% de seus contratos em planos individuais. Nos demais 90% os planos são coletivos, cujos aumentos não são regulados pela Autarquia Federal da ANS, deixando a relação à mercê do interesse da operadora em detrimento do usuário, que terá a possibilidade de discutir a situação na via judicial. Quanto tempo demora uma demanda dessa?

Traduzindo. A operadora aumenta o peço e não repassa nada ao médico prestador de seus serviços. O usuário paga o aumento ou discute na via judicial, se não preferir se desligar. Portanto, os custos menores sugeridos como vantagens para a telemedicina virão de encontro ao interesse apenas do tomador dos serviços, jamais em benefício do médico assistente e muito menos do usuário do plano.

Maior rapidez no tratamento. Dois proveitos não cabem em um mesmo saco, já dizia o brocardo popular. Rapidez jamais foi sinônimo de segurança. Acelerar significa aumentar o risco de que o tratamento não tenha a eficácia que os envolvidos gostariam. Ao menos médico e paciente não têm interesse em acelerar se isso for sinônimo de piora no atendimento assistencial.

Apenas um ator tem interesse na rapidez do atendimento. As operadoras de saúde trabalham com custos atuariais e buscam a maximização de seus lucros. O atendimento célere corresponde ao maior resultado econômico dos grandes grupos, em detrimento do usuário e do médico assistente.

Por outro lado, o Conselho Federal de Medicina publicou em 2018 a Resolução2.227/18 que definia e disciplinava a telemedicina como forma de prestação de serviços médicos mediados por tecnologia. Antes mesmo de sua entrada em vigor e durante a vacatio legis a resolução foi revogada pelo Conselho, em sessão plenária extraordinária realizada em 26 de fevereiro de 2019, conforme Resolução CFM 2.228/19.

Uma leitura mais acurada do diploma legal e já era possível perceber um distanciamento ainda maior da classe médica de seus pacientes, já submetidos a regimes de atendimentos e consultas disciplinados pelas operadoras de planos de saúde e grandes grupos empresarias.

A grande preocupação que tomou conta das entidades médicas contrárias à resolução, para citar alguns exemplos, se dava quanto aos preceitos éticos e legais quando o atendimento à distância fosse de fato intermediado por operadoras de planos de saúde. Mesmo no prazo de vacância da Resolução CFM 2.227/18 já havia operadora oferecendo triagem pediátrica por vídeo dentro de um aplicativo de smartphone.

Sem embargos dos necessários avanços tecnológicos, certo é que no § 4º do artigo 3º, a resolução informava textualmente que “a guarda das informações relacionadas ao atendimento realizado por telemedicina deverá atender à legislação vigente e estará sob responsabilidade do médico responsável pelo atendimento”.

Antes mesmo da revogação anunciada, já havíamos chamado a atenção para o fato de que o Conselho Federal de Medicina criou hipóteses de responsabilidade objetiva para o médico assistente, agravando ainda mais o risco de sua atividade, ao dizer ser ele o responsável pela guarda das informações relacionadas ao atendimento realizado sob essa modalidade.

Toda a cadeia de serviço que se inicia com o médico a distância e se dissipa pelos meios eletrônicos passaria a ser responsabilidade do médico assistente, que primitivamente examinou o paciente e que agora passaria a ser o responsável por toda a extensão eletrônica possível de seu atendimento.

Alertamos ao dizer que o médico é uma ponta do atendimento na cadeia de serviços, mas, que por ela passaria a responder de maneira integral. Essa era a regulamentação do § 4º do artigo 3º da Resolução CFM 2.227/18.

Ainda sob o aspecto da responsabilização, o artigo 4º, § 5º informava que “em caso de participação de outros profissionais de saúde, estes deveriam receber treinamento adequado, sob responsabilidade do médico pessoa física ou do diretor técnico da empresa intermediadora”.

Além de toda a carga de responsabilidade atrelado ao atendimento técnico, o médico assistente passaria também a ser o responsável pelo treinamento dos demais profissionais envolvidos.

Não bastasse a carga de responsabilidade já existente no exercício da profissão, o Conselho Federal de Medicina trouxe para seus afiliados a responsabilidade pelos profissionais que o acompanham, desconsiderando por completo o grau de participação de cada um no evento danoso e na medida de sua culpabilidade.

Já no artigo 8º, § 1º do revogado diploma, havia sido regulamentada a telecirurgia, com a seguinte redação: a telecirurgia é a realização de procedimento cirúrgico remoto, mediado por tecnologias interativas seguras, com médico executor e equipamento robótico em espaços físicos distintos.

No § 1º, por sua vez, a resolução informava que a telecirurgia somente poderia ser realizada em infraestrutura adequada e segura, com garantia de funcionamento de equipamento, largura de banda eficiente e redundante, estabilidade do fornecimento de energia elétrica e segurança eficiente contra vírus ou invasão de hackers.

Seria possível imaginar um atendimento médico nos rincões do Brasil? A tecnologia, de fato, chegará a esses lugares? Se pretendemos levar atendimento remoto com tecnologia de ponta a locais onde não há médicos e muito menos tecnologia de ponta, a intenção anunciada não se sustenta, ao menos sob esse aspecto.

Porém, de todos os dispositivos apontados da revogada Resolução CFM 2.227/18, o mais polêmico era o § 5º do artigo 8º. Referido dispositivo informava textualmente que o médico local deveria se responsabilizar pela intervenção cirúrgica em situação de emergência ou em ocorrências não previstas, tais como falha no equipamento robótico, falta de energia elétrica, flutuação ou interrupção de comunicação, etc

O médico local, aquele que realiza o atendimento, passaria a responder objetivamente pelas falhas nesse atendimento. Faltou luz, o médico seria o responsável. Faltou manutenção no equipamento, o médico seria o responsável. Ocorreu interrupção na comunicação, o médico seria o responsável.

Pior, ao utilizar em cláusula aberta o termo “ocorrências não previstas”, a Resolução CFM 2.227/18 abriria margem para interpretar que qualquer intercorrência nesse tipo de atendimento à distância passaria a ser de responsabilidade do médico executor, eximindo os demais atores de qualquer outra carga de culpa se o atendimento desse errado

Por fim, a Resolução CFM 2.227/18 informava ainda que a telemedicina foi originalmente criada como uma forma de atender pacientes situados em locais remotos, longe das instituições de saúde ou em áreas com escassez de profissionais médicos. Como chegaria o atendimento se nesses locais não há tecnologia.

Escassez é falta. Estava dito textualmente que a telemedicina foi idealizada para atender locais onde não há médico. Como realizar um atendimento médico sem médico? Como isso é possível? Daí podemos concluir que o CFM idealizou uma resolução com a expectativa de que haveria atendimentos médicos sem o médico.

A medicina avança e com ela as tecnologias. Porém, a tecnologia deverá se adequar ao serviço médico, e não o contrário. A telemedicina deverá se adaptar à forma como os serviços são prestados, em atenção e melhoria ao trabalho realizado pelo médico assistente.

Jamais distanciar as partes ou eliminar a fidúcia existente. Em boa hora o Conselho Federal de Medicina recuou e revogou o diploma sob comento. A responsabilização objetiva do médico disciplinada no texto é algo contrário à própria legislação federal, disciplinada nos artigos 186 e 927 do Código Civil e no artigo 14, § 4º da Lei 8.078/0 (CDC).

Preceitos e interesses mercantilistas e de grandes grupos não devem se sobrepor aos preceitos éticos da profissão (Inciso IX do CEM). É preciso um diálogo amplo, sobretudo com os médicos, através dos conselhos regionais e das entidades representativas da classe, para entender melhor suas realidades e suas preocupações, assim como as variáveis que poderão incidir nessa modalidade de atendimento assistencial. Não há como responsabilizar um médico por um serviço que tecnicamente não executa.

*Artigo publicado por Valério Augusto Ribeiro.

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